Natureza



Passear pela natureza com o espírito livre de preocupações é essencial para que o homem moderno mantenha a vitalidade e a paz interior. 

Navegar é preciso, viver não é preciso”, diziam os antigos navegadores portugueses. E, de fato, 500 anos depois, não há dúvida de que navegar, ou viajar, é inevitável. A ciência moderna demonstrou que viajar é viver, porque tudo que existe flui em um eterno movimento.


O núcleo de cada átomo do universo é como um pequeno Sol em torno do qual navegam elétrons em alta velocidade. Nossa galáxia é regida pela lei do movimento. A própria palavra “planeta”, que vem do grego,significa “errante” ou “viajante”.

 A Terra já foi comparada a uma nave espacial, devido à sua viagem incessante em torno do Sol. Além disso, nosso planeta gira em torno do seu próprio eixo, o que dá origem aos nossos dias e noites. Parece pouco? O sistema solar também está em peregrinação.

 Ele viaja à velocidade de 960 quilômetros por minuto, ou 57.600 quilômetros por hora, em direção à estrela Vega, a mais brilhante da constelação de Lira. Felizmente, Vega não está parada. Ela se desloca pelo cosmo numa direção e com uma velocidade que garantem pelo menos uma coisa: ela nunca será alcançada por nós.

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A mudança e o movimento – tanto internos como externos – são,portanto, o estado natural de tudo o que existe. Qualquer imobilidade ou estabilidade são subjetivas e passageiras. Permanentes são a transformação e a harmonização dinâmica das coisas em todo o cosmo.


 A cada desarmonia, segue-se uma harmonia maior e mais completa.Se tudo está em movimento e nada existe fora da dança do universo, não há motivo para que nós queiramos viver fechados entre quatro paredes,como se fosse possível existir sem transformar-se. 

É só quando perdemos o contato com o ritmo natural da vida que o escritório, a fábrica, o apartamento ou a casa passam a funcionar como modernas prisões, ricas em recursos tecnológicos.

Segundo o filósofo Karl Gottlob Schelle, viver continuamente em atmosferas confinadas amolece o espírito das pessoas e enfraquece o seu bom senso. “O movimento do corpo não é diretamente uma das condições da vida”, escreve Schelle, “e sua ausência não desencadeia irremediavelmente a morte (...) mas ele é, no entanto, uma condição indireta. Ele é indispensável para a saúde do corpo e para o bom funcionamento do organismo”.

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A solução passa pela simplicidade voluntária. Basta caminhar regularmente ao ar livre e conviver com ambiente natural para recuperar e manter a vitalidade.A antiga arte de passear pela natureza rompe os muros invisíveis da rotina e amplia nossos horizontes pessoais. É verdade que essa arte
meditativa nem sempre precisa ser praticada a pé.


A bicicleta e o cavalo são alternativas admissíveis, até certo ponto,porque permitem andar em silêncio, em baixa velocidade, em contato como vento, percebendo a magia e preservando a paz da natureza.A arte oculta de viver com sabedoria inclui a necessidade de manter o corpo físico saudável e acostumado ao movimento. Isso nos estimula a tomar duas providências.


A primeira é incorporar um pouco de trabalho físico à nossa rotina diária.A segunda é adotar o hábito de meditar caminhando. Passear e contemplar a unidade da vida são duas atividades que podem ser feitas ao mesmo tempo. Quando caminhamos pela natureza com o espírito livre de preocupações, nosso sistema nervoso relaxa, o sangue circula com mais força e vitalidade, o cérebro e o coração têm sua vida renovada.


Em todo o organismo, a vitalidade flui melhor. Enquanto isso, podemos contemplar o processo da vida ao nosso redor e perceber mais claramente a nossa identidade profunda com os outros seres.

Outra questão é saber o que o caminhante carrega consigo durante o passeio. Afinal, cada espírito humano possui uma espécie de bagageiro.Ali vão inúmeras lembranças, idéias, crenças, projetos e alguns princípios éticos. 


Nem sempre carregamos bagagens agradáveis em nosso espírito. Há também feridas e cicatrizes da alma guardadas ali. Uma coisa é certa, porém. O bom passeador não aceita angústias e ansiedades como parte da sua bagagem. Enquanto pedala ou caminha, ele esquece as atividades de curto prazo e expande sua consciência. 

As preocupações vão desaparecendo junto com as outras formas de apego emocional. Esse processo de relaxamento é ajudado pelas reações bioquímicas que o exercício físico moderado causa naturalmente no corpo humano. O espírito do caminhante se eleva, até que um dia ele passa a perceber em todas as coisas o princípio universal do equilíbrio e da harmonia.


É com esse estado de espírito vasto e sereno que devemos caminhar.


Aquele que possui uma mente aberta e um coração puro sabe escutar melhor o som do vento nas folhas das árvores. O aprendiz da sabedoria ouve o cântico dos pássaros e aprecia o nascer do Sol sem pressa ou apego. Com a mesma tranqüilidade que tem ao observar o vôo de um pássaro no céu, ele vê as ondas de pensamentos e sentimentos no espaço interior da sua própria consciência.

Na verdade, não há uma separação entre o mundo interno e o mundo externo. De um lado, as nossas emoções são influenciadas pelo que está fora de nós. E, de outro, sempre julgamos o mundo externo a partir daquilo que carregamos em nossa própria mente e nosso coração.

Há milhares de anos, diferentes tradições religiosas usam longas peregrinações por terras desconhecidas como meio e método para a libertação dos apegos interiores. É preciso abrir mão tanto dos objetos externos como dos conteúdos internos para conhecer a liberdade espiritual. O budismo, o hinduísmo e o cristianismo têm disciplinas espirituais que incluem o abandono da vida “normal” – feita de hábitos e compromissos – para viajar pelo mundo durante um período indefinido de tempo.

As caminhadas curtas também são parte daquilo que, não por acaso,passou a ser chamado de “caminho interior”. O ato de caminhar era um item básico da vida cotidiana e da disciplina espiritual nas escolas de filosofia do mundo antigo.

Para o cidadão moderno, os passeios a pé, de 30 ou 40 minutos diários,são exercícios eficientes de meditação e higiene mental. Alguns alegam que não têm tempo para isso. O argumento é compreensível. O hábito de caminhar exige que se abra mão da rigidez e da imobilidade.


 É necessário renunciar à rotina da pressa emocional para olhar o mundo de outros pontos de vista, enquanto mantemos o corpo em movimento e observamos o fluxo de nossos sentimentos e pensamentos. São João da
Cruz escreveu: “A alma que está apegada a alguma coisa, por mais bem que haja nela, não pode chegar à liberdade da união divina. 


Porque não tem importância se é uma corda grossa e forte ou um fino e delicado fio que prende o pássaro; até que o grilhão se rompa, o pássaro não pode voar.”

Os passeios de bicicleta nos permitem perceber a magia do mundo à nossa volta.A prática do desapego está de tal forma associada à arte de passear que, para o escritor chinês Lin Yutang, “o verdadeiro viajante é sempre um vagabundo, com as alegrias, as tentações e o sentido de aventura que tem o vagabundo. Viajar é andar à toa, ou não é viajar”.


Segundo Yutang, “a essência da viagem é não ter deveres nem horas marcadas”. É recomendável esquecer os assuntos pessoais.


 Lin Yutang acrescenta:“O bom viajante é o que não sabe aonde vai, e o viajante perfeito é o que não sabe de onde vem. Nem sabe seu nome e sobrenome. (...) É provável que esse viajante não tenha um único amigo em terra estranha,mas, como disse uma monja chinesa, ‘não estimar a ninguém em particular é estimar a humanidade em geral’. 

Não ter um amigo particular é ter a todos por amigos. Esse viajante, que ama a humanidade em geral, mistura-se com ela e vagueia, observando o encanto das gentes e de seus costumes.”

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Defensor da espontaneidade, autor de obras marcadas pelo espírito da mensagem taoísta, Yutang afirma que o equipamento mais necessário para quem passeia “é um talento especial no peito e uma visão especial debaixo das sobrancelhas”.


 Ele prossegue: “O que interessa é saber se o viajante tem coração para sentir e olhos para ver. Se não os tem, suas excursões à montanha são pura perda de tempo e de dinheiro; em compensação, se os tem, poderá conseguir a maior alegria das viagens sem ir sequer às montanhas, mas permanecendo em sua casa e olhando os arredores, e percorrendo os campos para contemplar uma nuvem fugitiva, ou um cachorro, ou uma cerca, ou uma árvore solitária.

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Em meio à natureza, o caminhante renova a sua vitalidade física enquanto medita. Se meditar é expandir a consciência em direção ao que é imenso, sagrado e muito maior que ela própria, então é possível haver meditações inconscientes e involuntárias. E é isso que ocorre quando caminhamos.


O convívio com plantas e animais nos ensina que a inteligência universal está por toda parte. Há uma inteligência nas orquídeas. Os pássaros têm sua linguagem. O vento sugere coisas. As árvores são seres evoluídos. Para o escritor Maurice Maeterlinck, cada planta que encontramos pelo caminho é um ser dotado de inteligência:

“Não é somente na semente ou na flor, mas em toda a planta, caule,folhas e raízes, que se descobre, se quisermos inclinar-nos por um instante sobre seu humilde trabalho, numerosos sinais de uma inteligência perspicaz.


 Lembre-se dos magníficos esforços em direção à luz feitos por galhos contrariados, ou a luta criativa e valente das árvores em perigo.” E Maeterlinck narra o drama de uma grande árvore situada à beira de um precipício, cuja pedra de apoio caíra, mas que se sustentava miraculosamente lançando novas raízes ao solo para evitar o pior. Espetáculos como esse são relativamente comuns nas margens dos rios atacados de erosão.

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Depois de discutir a questão da inteligência dos vegetais e dos insetos, Maeterlinck aborda em poucas palavras um tema central da filosofia esotérica:

“Mas que pouca importância tem, no fundo, a questão da inteligência pessoal das flores, dos insetos ou dos pássaros! Que se diga, a propósito da orquídea como da abelha, que é a natureza e não a planta ou a mosca que calcula, combina, adorna, inventa e raciocina. Que interesse pode ter para nós essa distinção?”


Na verdade – acrescenta Maeterlinck –, também os conhecimentos humanos fazem parte da natureza. Nossas pequenas inteligências pessoais são parcelas de um conjunto maior: “Todos os nossos motivos arquitetônicos e musicais, todas nossas harmonias de cor e de luz, etc. são tomadas diretamente da natureza.”


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Sabendo disso, o bom passeador caminha ou pedala em harmonia com o cosmo, tanto na avenida de uma grande cidade como na beira do mar ou na trilha de um bosque. Ele percebe a unidade da vida e se reconhece como um pequeno ser participante da grande inteligência universal. 


Por esse motivo, o caminhante sente que nada tem a temer do passado, do presente ou do futuro. Ele vê que, no fundo, a paz comanda a vida – não só aqui e agora, mas também em todas as partes, e sempre.

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